Duas irmãs. Um caçador solitário. Uma terra distante.
Inglaterra, século XVII. A vida não tem sido generosa com a família Powers: uma vez abastados, agora passam por dificuldades financeiras devido à substituição dos serviços médicos de Daniel Powers pelos mais financeiramente acessíveis, porém menos confiáveis, barbeiros que invadiram as cidades e prejudicaram o ofício. Atendendo pacientes dia e noite para sustentar as filhas, a saúde do patriarca não vai bem: suas mãos já não são tão firmes quanto antes e o fim está a espreita - sem família próxima a quem recorrer, providências devem ser tomadas para garantir a subsistência de suas meninas.
May, linda, altiva e independente, foi educada para se casar com um homem possuidor de bom dote: prendada, sabe cozinhar, cuidar da casa e costurar. Porém, desde cedo ela percebeu que seu corpo voluptuoso chamava a atenção dos homens e seu prazer em cativá-los por uma noite era imensurável - mesmo tomando todos os cuidados para não engravidar, sua reputação na pequena vila é irremediavelmente manchada e ela é vista quase como uma prostituta.
“Sua irmã é movida pela paixão, enquanto você tem uma propensão pela melancolia. Os humores têm de estar em equilíbrio.”
Por outro lado, Hannah não possui muitos atrativos sexuais - e, embora admire (e talvez até deseje um pouco) essa característica da irmã, sua natureza vai de encontro ao desenvolvimento intelectual. Iniciada pelo pai na arte medicinal, prática proibida para mulheres na época, Hannah exerce o ofício às escondidas no lugar do pai, que já não consegue operar como antigamente, quando os pacientes estão inconscientes em sua mesa de cirurgia. Os laços entre pai e filha ficam mais fortes à medida que os conhecimentos de Hannah aumentam, e ela sente como se tivesse sido criada como o filho que Daniel não chegara a ter devido à morte de sua mãe ao lhe dar a luz.
May e Hannah Powers - o amor que une as irmãs é tão intenso que não importa a diferença entre os interesses, entre os caminhos que foram criadas para seguir. Uma coisa, porém, elas têm em comum: ambas vão na contramão do que a sociedade espera delas, se comportando de maneira condenável para a época. Numa última tentativa de reparar a reputação de sua família e garantir que as filhas não passariam fome após a sua morte, Daniel Powers escreve a um primo distante, dono de uma pequena fazenda no Novo Mundo e pai de um jovem em idade de casar: em troca da mão de May, ele pede apenas que suas duas filhas fossem abrigadas no futuro. Não haveria luxo mas era a melhor proposta que a moça poderia receber, considerando que não era mais virgem e respeitável - era uma chance para começar de novo em um local onde ninguém, além do marido e o sogro, saberia de seu passado.
“O Pai ensinou-lhe que o lugar no qual duas paralelas convergentes se encontravam no horizonte era conhecido como ponto de fuga. Para além daquele ponto, elas desapareciam de vista.”
Preocupada especialmente com o futuro de sua irmã mais nova, May embarca para uma longa viagem com destino à desconhecida América do Norte, no que ela se convence ser uma grande aventura. Hannah fica desolada ao se despedir da querida irmã, observando-a ser levada para além-mar até que, ao encarar o horizonte, o navio não fosse visível. Após a partida, os dias não parecem ter tanta vida: seus afazeres se resumem em cuidar do pai adoentado e realizar os serviços domésticos nos quais nunca fora muito talentosa, enquanto aguardava ansiosamente por notícias da irmã - que vinham em cartas vagas pouco acalentadoras.
Pouco tempo depois, seu pai falece. Sem condições de manter a residência em que passou toda a sua vida, Hannah vende a propriedade e dispensa sua querida governanta, Joan - já velha e com prioridades diferentes para tratar. Com as poucas economias que conseguiu economizar, ela paga sua viagem para o Novo Mundo onde poderá, finalmente, se reunir à irmã. Após sobreviver à difícil jornada, o que Hannah menos esperava era encontrar a casa no estado deplorável em que estava - abandonada, fria e vazia. A notícia que lhe aguardava era pior ainda: May, sua querida May, morrera durante o parto e o bebê não sobrevivera.
“A terra exige sangue de vez em quando.”
Seu cunhado, Gabriel Washbrook, um quase menino de olhos azuis e corpo esguio, foi a única pessoa a permanecer no local: depois da morte do pai, todos os empregados se foram, levando consigo alguns dos pertences da família. Desiludido, Gabriel decidira viver afastado do convívio social, sobrevivendo de sua própria caça. Impossibilitada de voltar prontamente, Hannah decide estender a sua estadia por alguns dias, que logo se tornam semanas, que se arrastam em meses... O convívio com o cunhado suscitará sentimentos inesperados que a farão duvidar de sua moral, além de levantar questões sobre o verdadeiro motivo da morte da sua irmã. Será que aqueles olhos azuis escondiam mais do que apenas um passado sofrido?
Literalizando...
Ponto de Fuga foi, para mim, uma grande surpresa - em todos os sentidos imagináveis. Para começo de conversa, eu não fazia ideia de qual seria o tema da obra e juro que nunca imaginaria se tratar de um romance de época - gênero literário que, por sinal, raramente tenho contato. A primeira coisa que me conquistou, logo de cara, foram as descrições ricas da cultura e dos costumes: só depois fui descobrir que a autora, Mary Sharratt, dedicou dez anos à pesquisas para escrever o livro - e, de fato, vemos os frutos de seu trabalho duro em cada momento imersivo. Devo admitir que a leitura foi um pouco difícil de engatar no início, mas associo isso com a minha total falta de hábito com o estilo e por não saber bem o que esperar - a narrativa da autora não deixa a desejar em nenhum aspecto.
“Tudo depende da dosagem. Qualquer medicamento pode curar ou envenenar, dependendo da dose.”
Os personagens são outro ponto forte da obra: é impossível não se apegar, não torcer, não sofrer com o caminho que cada um deles acaba por trilhar. Os primeiros capítulos alternam entre as duas irmãs, dando um panorama inicial da personalidade de cada uma que foi essencial para que eu começasse a me envolver com as protagonistas - no entanto, a partir da viagem de May veremos um predomínio da perspectiva de Hannah. Embora esse foco narrativo faça sentido - para manter o mistério de como ela viveu e, supostamente, morreu naquela terra estranha -, senti muita falta da personalidade forte da mulher de cabelos cor de fogo e olhar intenso: temos poucos deslumbres espalhados pela obra de momentos que ela passou naquela humilde casa com o marido que nunca amou.
Devo dizer, contudo, que Ponto de Fuga é um livro para amar ou para odiar - justamente porque ele faz refletir sobre muitas coisas que nós geralmente jogamos para um canto sombrio no nosso consciente, para não termos de lidar com aquilo. Toda a trama gira em torno das consequências de ações impensadas e da impossibilidade de contorná-las - porque quando percebemos, já é tarde demais e só resta a dor do "e se...?". Por muitos dias depois de finalizar a leitura, me peguei fantasiando como seria o desfecho da obra se determinado personagem não tivesse feito tal coisa, ou se outro personagem se comportasse dessa forma, ou se outro ainda simplesmente tomasse uma iniciativa diferente. E um ponto importante a destacar é esse: não espere um final feliz, porque aqui encontramos apenas uma realidade nua e crua que pode desagradar boa parte dos leitores - e fazer sofrer todos eles.
“Ele trabalharia até que suas mãos castigadas sangrassem, mas não conseguiria bani-la de sua mente. Mais do que nunca, compreendeu o que significava ser um homem atormentado.”
O protagonismo feminino é outro fator muito presente - e, para quem me conhece um pouco melhor, sabe o quanto isso me conquista em qualquer obra. May e Hannah são duas mulheres de garra, são fortes e correm atrás de seus objetivos sem se importar muito com o que vão dizer ou com as dificuldades que irão encontrar pelo caminho: por mais divergentes que sejam suas personalidades, as irmãs são como dois lados de uma mesma moeda e têm muito mais em comum do que elas próprias percebem a princípio. O amor que as une é tão forte, que pode muito bem fazer com que uma não consiga superar a morte da outra... Será que as suspeitas de Hannah são apenas modos de lidar com a ausência dolorosa da irmã e com os sentimentos estranhos que nutre por Gabriel?
Aleatoriedades
- Respondi uma tag no instagram sobre signos e as duas irmãs marcaram presença: May como uma impulsiva ariana e Hannah como a sentimental canceriana.
- Achei o projeto gráfico bem fraco (estranho, vindo da querida Suma de Letras) tanto que eu pensei que seria algo do estilo investigação policial. Imaginem minha surpresa ao me deparar com um romance de época?
- Esse potinho fofo com uma conchinha meiga dentro foi feito por uma amiga minha que vende artesanato, vocês podem conferir outras fofurices no instagram da loja dela.
- Eu amei essas fotos e irei protegê-las. Foram as primeiras em que tive coragem de sair do padrão de fundo com folhas de livro, espero que vocês tenham gostado tanto quanto eu!
Título: Ponto de Fuga | Autor: Mary Sharratt | Editora: Suma de Letras | Páginas: 368 | Skoob
O que vocês acharam de Ponto de Fuga? Alguém já leu? Me contem nos comentários!