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23/01/2018

Amanhecer

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Os primeiros raios de sol tocaram sua pele, a desejada calidez anunciando o fim do vento enregelante que soprou cruelmente durante toda a jornada da lua em um céu marcado por constelações desconhecidas - seu brilho lânguido envolvendo o solo num abatido abraço, tal qual um amante ciente da efemeridade de seu romance. A noite nunca era gentil: vinha se arrastando com um prenúncio de morte até se agigantar diante da pobre alma desabrigada que, em uma tentativa tola de se proteger dos mordazes olhos do destino, escondia-se em troncos ocos ou sob as abundantes folhas secas que pareciam zombar de seu medo. Suas tentativas eram frustadas, uma a uma - não se podia fugir de si mesmo.
Se perguntassem, algo improvável visto que já perdera a conta dos dias desde a última vez que dirigiram-lhe a palavra, admitiria com certo tremor em sua voz que não saberia dizer quanto de suas noites aterrorizantes eram frutos de pesadelos - sua mente não era um lugar confiável desde que fora compartilhada com uma presença maligna que não possuía intenções imediatas de se retirar. As garras fétidas que agarravam ferozmente sua garganta, a podridão saboreada em sua língua e os ensurdecedores gritos de puro horror poderiam ser apenas ilusões induzidas - o que não tornava as feridas menos reais.
Não conseguia determinar se os dias eram uma benção ou apenas outra maldição: o calor expulsava os demônios, mas só tornava a ansiedade para a próxima tormenta mais dolorosa. A calmaria que se instalava durante os momentos de calor só era perturbada pelo retumbar de um coração assombrado pela espera do último assobio dos passarinhos - o momento em que o silêncio mortífero se instalava era o exato instante em que seu coração congelava de pavor. Dias de inquietude seguidos por noites de terror - este era seu fardo. Sua única companhia, na eterna escuridão de olhos que há muito não podiam ver, eram as lembranças de tempos imemoriais e o vazio deixado por aqueles que se foram.
Arrepiava-se, como se nem o calor que envolvia seu corpo fosse suficiente para afastar o terror gélido de noites carregadas com a ameaça de serem a última - a derradeira, a que daria fim a sua miserável existência. Percebeu que não respirava no momento em que seus pulmões clamaram pelo ar, com uma dolorida ardência que chegava a ser prazerosa pois significava que ela ainda estava... viva.
Sim, sentia a vitalidade na brisa que tocava suavemente seu rosto marcado por inúmeras batalhas - vencidas e perdidas. Os olhos de um branco leitoso, outrora de um intenso tom acobreado, não eram capazes de perceber o belo nascer do sol que encheu de esperança todos os corações sofridos - mas aquele sentimento invadiu todas as suas células sem pedir permissão e proveu-lhe vigor para ao menos tentar fazer algo diferente naquele novo dia. Apoiando as calejadas mãos na grama pinicante, fez um esforço colossal para erguer seu corpo judiado. Saiu de seu esconderijo e tomou a difícil decisão de não mais ficar à espera da agonia - se esta quisesse continuar sua tortura, teria de ir ao encontro da agora determinada sobrevivente.

Este texto foi escrito para o projeto Na Ponta da Caneta, do Who's Thanny, cujo tema de janeiro era recomeço. Usei essa oportunidade e a inspiração para desenvolver o meu universo - e cumprir uma de minhas metas do ano, que é finalmente tirar (ou colocar) o meu livro no papel.    

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