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Photo credit: _ alt3 _ on Visual hunt / CC BY-ND |
Uma noite escura e sem estrelas ‒ nenhuma alma viva poderia culpá-las por se recusarem a ver este mundo estéril e ignorante: eles trouxeram as sombras para si mesmos, que lidem com a mortificação resultante... quando a perceberem. Nesse meio tempo, deixe que cortem temporariamente o manto da escuridão com as luzes e o calor de seus bares cheios de inconsequentes rindo alegremente da própria debilidade. Tolos. O diminuto vulto se movia com agilidade e discrição costurando seu caminho pela escuridão: ser visto sozinho por aquelas bandas a essa hora o traria problemas com os quais não estava com paciência para lidar. Muito dependia dele. Falhar não era uma opção.
Normalmente seus planos prezavam pela segurança ‒ morto, ele não seria de utilidade nenhuma aos seus irmãos. Faziam o possível para se sustentar com o mínimo, priorizando os mais jovens e capazes de garantir que a raça não desaparecesse da face deste mundo pobre em magia. Mas não dessa vez. Não depois do olhar moribundo e faminto que se despediu dele há poucos minutos... seu coração clamava para que não tivesse sido pela última vez. O sangue que corria pelas suas veias, bombeado com força descomunal em sua caixa torácica, estava contaminado por um sentimento que nunca antes esteve tão presente: o ódio. O desespero. A dor.
O vulto pára de súbito. Assim não. Deixar que as injustiças cometidas pelos malditos humanos possua sua mente e coração só faria com que ele fosse descoberto ‒ e ele estava cansado de fugir, sentindo o desprezo e a intolerância em seus calcanhares. A perseguição, que erradicou inúmeras linhagens e os obrigou a se esconderem em buracos como aquele do qual ele acabara de sair, era algo que simplesmente não podia distraí-lo hoje. Não havia nada que os poucos que restaram pudessem fazer sozinhos para mudar qualquer coisa. Só precisavam sobreviver, na tola esperança de que um dia... Não importa. Ele apoia as costas em uma das paredes frias do beco, sentindo através da roupa maltrapilha a umidade que perdurava da chuva que tornou o dia cinza. Inspira profundamente, permitindo que as sensações do ambiente o invadam ‒ o odor pungente de corpos suados banhados a álcool chega a suas narinas, acompanhado pela brisa leve que traz consigo o burburinho de uma multidão próxima ‒ e expira, pronto para dar cabo da tarefa que o aguarda.
Recomposto, o vulto retorna à sua movimentação fluida e avança até uma rua sem saída onde centenas de pessoas se reuniram de forma improvisada para comemorar o que quer que eles pensassem ser um motivo digno de tal comoção. Seu campo de visão foi preenchido por danças frenéticas e sem propósito acompanhadas de rostos marcados por sorrisos embriagados: não seria um problema, com sua constituição miúda, misturar-se na multidão que vibrava em conjunto como um único ser ‒ muito menos coletar tudo de valioso que encontrasse em seu caminho.
Era um trabalho corriqueiro, embora em escala maior do que jamais havia sido. Sua mente começava a se distanciar do momento quando algo na atmosfera mudou: aos poucos os corpos paralisaram e, por um instante terrível, ele temeu ter sido notado ‒ mas ninguém sequer olhou em sua direção. Todos os olhares estavam voltados para o palco precário montado no fim da rua, onde uma humana de aparência singela emanava uma aura de nervosismo disfarçada de autoconfiança tranquila: ela não conseguia enganá-lo, embora todos ali parecessem hipnotizados por sua presença. Mas nada, nada, o preparara para as notas que ela faria surgir e os sentimentos que as mesmas suscitariam: ele fechou os olhos, em um momento único de vulnerabilidade. A música... de alguma forma, ela fez com que um sentimento já esquecido de alegria de viver começasse um lento processo de preencher o seu coração já desacostumado com qualquer positividade.
Ele correu. Correu para o mais longe possível daquela sensação efêmera que só tornou ainda mais doloroso voltar para o desamparo com o qual já havia se habituado ‒ embora estivesse longe de se conformar. Ele foi embora enquanto aqueles que tinham a liberdade desfrutavam da mesma. Descuidado, o homem de comportamento contido e mente extremamente racional cambaleou até o seu miserável destino. Foi recebido por rostos com mais desilusão no olhar do que de costume:
━ Sentimos muito, Cahal...
O vulto pára de súbito. Assim não. Deixar que as injustiças cometidas pelos malditos humanos possua sua mente e coração só faria com que ele fosse descoberto ‒ e ele estava cansado de fugir, sentindo o desprezo e a intolerância em seus calcanhares. A perseguição, que erradicou inúmeras linhagens e os obrigou a se esconderem em buracos como aquele do qual ele acabara de sair, era algo que simplesmente não podia distraí-lo hoje. Não havia nada que os poucos que restaram pudessem fazer sozinhos para mudar qualquer coisa. Só precisavam sobreviver, na tola esperança de que um dia... Não importa. Ele apoia as costas em uma das paredes frias do beco, sentindo através da roupa maltrapilha a umidade que perdurava da chuva que tornou o dia cinza. Inspira profundamente, permitindo que as sensações do ambiente o invadam ‒ o odor pungente de corpos suados banhados a álcool chega a suas narinas, acompanhado pela brisa leve que traz consigo o burburinho de uma multidão próxima ‒ e expira, pronto para dar cabo da tarefa que o aguarda.
Recomposto, o vulto retorna à sua movimentação fluida e avança até uma rua sem saída onde centenas de pessoas se reuniram de forma improvisada para comemorar o que quer que eles pensassem ser um motivo digno de tal comoção. Seu campo de visão foi preenchido por danças frenéticas e sem propósito acompanhadas de rostos marcados por sorrisos embriagados: não seria um problema, com sua constituição miúda, misturar-se na multidão que vibrava em conjunto como um único ser ‒ muito menos coletar tudo de valioso que encontrasse em seu caminho.
Era um trabalho corriqueiro, embora em escala maior do que jamais havia sido. Sua mente começava a se distanciar do momento quando algo na atmosfera mudou: aos poucos os corpos paralisaram e, por um instante terrível, ele temeu ter sido notado ‒ mas ninguém sequer olhou em sua direção. Todos os olhares estavam voltados para o palco precário montado no fim da rua, onde uma humana de aparência singela emanava uma aura de nervosismo disfarçada de autoconfiança tranquila: ela não conseguia enganá-lo, embora todos ali parecessem hipnotizados por sua presença. Mas nada, nada, o preparara para as notas que ela faria surgir e os sentimentos que as mesmas suscitariam: ele fechou os olhos, em um momento único de vulnerabilidade. A música... de alguma forma, ela fez com que um sentimento já esquecido de alegria de viver começasse um lento processo de preencher o seu coração já desacostumado com qualquer positividade.
Ele correu. Correu para o mais longe possível daquela sensação efêmera que só tornou ainda mais doloroso voltar para o desamparo com o qual já havia se habituado ‒ embora estivesse longe de se conformar. Ele foi embora enquanto aqueles que tinham a liberdade desfrutavam da mesma. Descuidado, o homem de comportamento contido e mente extremamente racional cambaleou até o seu miserável destino. Foi recebido por rostos com mais desilusão no olhar do que de costume:
━ Sentimos muito, Cahal...
Este texto foi escrito para o projeto Na Ponta da Caneta, do Who's Thanny, cujo tema de fevereiro era bloco de carnaval. Meu objetivo com esse projeto é desenvolver o universo do meu livro ‒ e o resultado está sendo ainda melhor do que eu esperava. Obrigada às meninas do WT por terem organizado esse projeto incrível!