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Photo on Visual hunt |
por Luciano Starling
Pacientemente, o homem de cabelos grisalhos separa incontáveis folhas de papel na mesa de seu escritório. Todas essas folhas se encontram impregnadas pelo cheiro característico de poeira e mofo, devido ao tempo e descaso no armazenamento. Ele sorri como um menino que ganhou o presente que sempre quis, e lê demoradamente o conteúdo de cada folha. Ele não tem pressa.
Partituras das mais diversas, contendo peças de vários artistas clássicos e contemporâneos - para a época de nosso protagonista encanecido. Peças inertes de papel, castigadas pelo tempo que faziam apenas passar informações, como todas as outras.
A informação que essas passavam chegava de forma diferente aos olhos de nosso caro homem cinzento, e rapidamente lhe marejam os olhos, gratos por reencontrar velhos amigos. Ele estampa um sorriso amplo que se mantém e se renova a cada página, a cada música que ele se põe a relembrar. Cada folha velha e mofada parece descarregar toneladas de emoções naquele homem castigado pela vida, e ter encontrado aquele arquivo esquecido no porão da casa de seu falecido pai fora o melhor presente que aquela nova fase de sua vida poderia lhe dar: nostalgia destilada e concentrada, apresentada como um chance de recomeçar, de fazer diferente.
Ele se levanta com as partituras nos braços como um recém-nascido e atravessa o cômodo escurecido pelas persianas que insistiam em estar fechadas, seguindo o padrão emocional de seu ruço e reservado dono. O homem para de frente a um móvel grande, feito de madeira escura e outrora muito bem polido - agora ostenta apenas uma camada generosa de poeira. É o bem mais precioso de nosso caro eu-lírico, e não é difícil imaginar o motivo: aquele é o piano que os homens de sua família passam de geração a geração. Um legado musical que usam para incentivar seus jovens a estudar música e outras artes, as quais julgam benéficas ao corpo e à alma.
O homem deixa de lado em uma mesa-de-centro o amontoado de folhas envelhecidas, e se pôe a prestar respeito ao suntuoso instrumento. Tira-lhe a poeira, lustra cuidadosamente sua madeira envernizada e limpa tecla a tecla, com o cuidado de não deixar ficar nenhuma das partículas de pó que se acumulou durante todos aqueles anos de esquecimento. Durante o processo se pergunta como pudera esquecer num canto tal presente. Seu pai lhe presenteara com o colosso musical aos dezoito anos, e desde então a vida só fizera distraí-lo, colocando o agora experiente homem em caminhos que o distanciaram ainda mais de tão formoso presente.
Ao fim de seu ritual de limpeza, o homem senta ao piano, dispondo no móvel o máximo de partituras que pode. Ele fita a janela que o leva diretamente aos seus primeiros anos de vida, e ele só faz soluçar e limpar lágrimas. Ele se sente com dezoito novamente, mas com uma diferença considerável: toda a trajetória de sua vida está ali, para ajudá-lo na jornada que recomeçava. Não do início, não era necessário esquecer o que acontecera. O passado inclusive era bem-vindo. Ele fazia parte da sinfonia. A sinfonia da vida de alguém que redescobria um amor. A sinfonia de alguém que se reencontrava e recomeçava. Não como um filme que se rebobina, mas como uma peça, que dispõe dos ritornelos em seu arsenal.
Assim, num ritornelo épico, o recomeço dá continuidade à sinfonia da vida.
O ritornelo é um sinal usado em partituras para sinalizar que uma parte específica deve ser tocada novamente - porém, é uma repetição com intuito de adicionar na música e não apenas começar de novo, melhorando a experiência através dessa reincidência. Este texto foi escrito pelo meu namorado, Luciano Starling, para o projeto Na Ponta da Caneta, do Who's Thanny, cujo tema de janeiro era recomeço. Vocês também podem conferir a minha participação, o conto Amanhecer.