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Fugir não é uma opção... não para sempre
O relógio não pára e nossas rotinas são cronometradas: temos um horário para acordar, para bater ponto, para almoçar, para conversar, para estudar, para ler e, de vez em quando, para se divertir. O equilíbrio é tênue e deve ser mantido a qualquer custo ⎼ muito trabalho, lazer se sobrar algo do tão indispensável tempo. Raras são as situações que quebram o ciclo, que exigem a atenção para si de uma forma que não abre espaço para recusas... que mudam completamente a vida como ela era antes. Os pássaros, de uma maneira ligeiramente distorcida, se enquadram bem como uma dessas ocasiões.
Poucos são, porém, os que se lembram de como as coisas eram e daquilo que as tornou como são hoje ⎼ aqueles que foram capazes de sobreviver na época hoje jazem mortos depois de toda uma existência evitando retomar as dolorosas memórias daqueles tempos. Mudanças, mesmo as melhores delas, podem ser insuportavelmente angustiantes. Já no fim de sua longa vida, o ancião é questionado por sua filha, a inquisitiva Anna, sobre a vida antes da chegada dos pássaros. Inicia-se, então, um relato de acontecimentos estranhos, tão estranhos, que talvez devessem permanecer encerrados nas ruínas do que uma vez foi a civilização.
❝Talvez eu seja o único homem vivo nesta ilha que se lembra dos pássaros. Muitos morreram naquela época; dos poucos que restaram, a maioria deve ter falecido desde então.❞
Para esta narrativa do passado, os campos são substituídos por ruas fétidas amontoadas por pessoas que, dia após dias, se viam inertes na correria de suas obrigações. As árvores, por sua vez, tomam a forma de edifícios: vistos de longe, mais parecem formigueiros com o entra e sai de seres humanos minúsculos em sua insignificância fazendo tarefas diminutas que, esperam, afete de alguma forma o todo. O ar puro... bem, digamos que neste cenário ele é disputado por multidões e nem deveria valer tanto assim. Sua juventude era desperdiçada a cada pôr-do-sol, embora naquela época se pudesse dizer que ele era um jovem muito bem-sucedido com seu emprego estável que garantia economias para um casamento que haveria de surgir no futuro próximo.
Em um monótono dia como qualquer outro, porém, seu retorno ao aconchego do lar foi interrompido por uma comoção: centenas de pessoas se reuniam, em um burburinho nervoso, para observar um bando de pássaros que, depois de dias sobrevoando a cidade de Londres, decide repousar como um manto negro em praças e ruas ⎼ sem intenções aparentes de sair tão logo, nem mesmo com as tentativas risíveis de enxotá-los dali. O que começou como um certo divertimento embaraçoso torna-se pouco a pouco horror quando os pássaros deixam de apenas estar ali e passam a constranger com seus olhares intensos, julgadores... e verdadeiros. As pessoas se dispersam e tentam, no calor de um interminável verão, ignorar o revoar de asas seguindo seus passos e a batida sutil em suas janelas durante a noite ⎼ mas não é possível fugir para sempre de si mesmo.
Literalizando...
Às vezes, ser desconectada de tudo o que se refere a produções cinematográficas traz suas vantagens ⎼ certamente, ter tido a oportunidade de ler o clássico Os Pássaros, de Frank Baker, sem as influências do filme homônimo de Alfred Hitchcock foi uma delas. Digo isso por duas razões: tanto porque eu tive a oportunidade de realmente descobrir o enredo quanto porque, aparentemente, o nome é a maior semelhança entre as obras ⎼ e seria péssimo iniciar a leitura com uma expectativa que certamente seria frustrada. Dito isso, também gostaria de comentar um pouco sobre como o livro foi retratado em sua divulgação: a imagem vendida, que fez com que eu desejasse adquirir um exemplar, foi de uma obra de terror que me deixaria com os cabelos em pé. O que eu encontrei, porém, foi muito diferente disso ⎼ para mim, uma grata surpresa, mas para muitos motivo de grande desapontamento, o que se reflete na avaliação mediana do livro em veículos como o Skoob e Goodreads.
Os Pássaros, um romance apocalíptico e introspectivo publicado originalmente em 1936, retrata a Londres dos anos 30 com suas peculiaridades culturais ⎼ mas também poderia, facilmente, se referir aos hábitos, preconceitos e segregações culturais da atualidade. O autor, por meio da aparição medonha dos pássaros, tece críticas ferrenhas a instituições como a Igreja, ao capitalismo e às relações predatórias por eles propiciadas. Como estudante de psicologia, pareceu a mim que Frank Baker teve fortes influências da cada vez mais predominante psicanálise: em 1930, Sigmund Freud publica "Mal-Estar na Civilização", que expõe como grandes geradores de angústia justamente o contato com o outro e a necessidade de se encaixar nas leis determinadas pela civilização. Também o grande conflito entre a força da Natureza e os esforços dominatórios do Homem, observados no enredo do livro, é algo que podemos depreender do texto de Freud ⎼ que tenta, em seu texto, compreender quais motivos levariam o ser humano a sacrificar tanto em prol de viver em sociedade.
Por mais que seja difícil quando se trata desta obra, tentarei deixar de lado os conceitos psicanalíticos que Frank Baker imbuiu em sua trama (de forma no mínimo interessante, por sinal). Voltemos ao que importa: os pássaros que, embora deem nome à obra, não são realmente o foco da narrativa. Li muitas opiniões que criticavam a falta de ação das belas e sombrias aves como algo que tornava a leitura maçante: devo concordar que o ritmo é estabelecido aos poucos, gradativamente, e que o início é de avanço um tanto custoso ⎼ mas me sinto inclinada a discordar quanto ao que seria, de fato, o âmago da obra. Nunca foram os pássaros, sejam eles força da natureza ou manifestação sobrenatural. Embora de fato sejam eles o mote, sua única função na trama foi desnudar do comportamento humano tudo aquilo que se esconde por baixo de uma camada bem grossa (e igualmente instável) de polidez: a figura dos pássaros personifica o que há de mau em nosso ser, aquilo que quando avistado gera apenas um pequeno incômodo mas que, quando ignorado, pode tomar proporções incontrolavelmente destrutivas ⎼ e resta a nós reconhecer este lado perverso a fim de seguir em frente, mais conscientes de quem somos de verdade e do potencial, seja para o bem ou para o mal, que carregamos conosco.
Vale alertar também para a narrativa de Frank Baker: mesmo com as revisões intensas descritas na introdução deste volume, o detalhismo quase mecânico com que o autor descreve a rotina do protagonista pode se tornar, em algum ponto, excruciante ⎼ em minha interpretação, justamente o efeito que era pretendido para demonstrar a monotonia dos dias cinzas retratados. Por outro lado, a perspectiva em primeira pessoa enriquece e favorece muito a abordagem dos conflitos internos vividos pelo jovem, que se depara com temas como a bissexualidade, a relação com a mãe, amores platônicos e desamores, além das reflexões e presságios acerca dos próprios pássaros.
❝Estava com medo. Do quê? Dos pássaros? Não.De algo bem mais profundo que não conseguia tentar definir e tampouco ousava tentar.❞
Minha experiência de leitura, pessoalmente, foi muito rica ⎼ embora extremamente incômoda, tanto por me deparar com reflexões que nós muitas vezes preferimos ignorar quanto por me identificar com alguns dos conflitos internos do protagonista. Os Pássaros parece ser um daqueles livros que ou você ama ou odeia e eu acredito piamente que embarcar na leitura sabendo minimamente o que te espera pode tornar a viagem menos vertiginosa. É uma obra tensa, vívida, com possibilidades infinitas de significações e ressignificações das mensagens transmitidas nas entrelinhas ⎼ o tipo de livro que parece se metamorfosear entre uma leitura e outra, que parece de tocar de uma forma diferente a depender do que o leitor oferece em troca. Cabe a cada um decidir, descobrir, o que são os seus pássaros: e se irá encará-los ou fugir.
Os Pássaros é uma obra de distopia pós-apocalíptica com elementos de suspense e mistério, voltado para o público adulto, que trata de temas como a natureza do ser humano e suas vicissitudes. A edição da DarkSide Books é luxuosa e uma ótima aquisição para a estante, mas o que vale mesmo é o conteúdo que trará reflexões profundas e intensas sobre o pássaro que cada um de nós carrega dentro de si.
❝(...) eu vi você e havia algo em seus olhos que eu sabia ser verdadeiro. Só que... só que não é verdade até que você veja a si mesmo.❞
Aleatoriedades
- Eu juro para vocês, passei mais de doze horas produzindo essa resenha. Sem dúvida, o maior tempo dedicado a uma obra analisada aqui no blog ⎼ e eu estou muito orgulhosa do resultado.
E esperando biscoitos, porque né.
- Um dos exemplares é meu, o outro é do Luciano. Sinto muito se iludi alguém com a possibilidade de sorteio.
- Eu ADOREI identificar as influências psicanalíticas na trama do livro! Se eu não me controlasse, poderia trazer muitas outros conceitos nessa postagem mas, como vocês podem ter percebido, ela já ficou longa mais que suficiente.
- O desenho do quadro que apareceu na primeira foto é de minha autoria. Inclusive, o tenho tatuado ⎼ na costela! O que vocês acharam dele?
Ufa! Ainda estão por aí? Vocês já leram "Os Pássaros"? Se sim, o que acharam do livro? Se não, têm interesse em ler? Me contem nos comentários!
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VOA, LIBELINHA
VOA! 🙘