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04/03/2019

Laranja Mecânica | Anthony Burgess

Nós abominamos spoilers. Você está seguro.

O homem nasce mau, a sociedade o corrompe

A maldade, meus amigos, é algo no mínimo peculiar. Qual é o objetivo de sempre fazer o bem, afinal? Isso é algo a se pensar, e quero que me acompanhem, pois de maldade a noite está cheia, e para um grupo nadsat adolescente ocioso não há ato melhor que aquela grandiosa ultra-violência. A sociedade de certo não aprova tais atos, honroso interlocutor, mas é disso que se fala essa expressão cultural. A reflexão maior cai à nossa fronte a posteriori, quando a máquina estatal, em sua grandiosidade quimérica mostra seus dentes de engrenagem, na tentativa de trazer para seus esquemas sórdidos e cronometrados estes inocentes filhotes de homem. Até onde podem, pretendem e se permitem chegar para erradicar o mau, que tanto os desafia?
Livro Laranja Mecânica de Anthony Burgess (Editora Aleph)
Aquele que nos conta de suas desventuras é o próprio Alex, que comanda contentemente uma gangue composta por seus três druguis amigos: Pete, Georgie e Tosko. Tudo começa claramente no Lactobar Korova, melhor lugar para consumir as maravilhas que o leite-com tem a oferecer ⎼ ideal, meus amigos, para começar uma noite perfeita regada ao concentrado mais intenso de violência. O que tinha de acontecer posteriormente, e que eventualmente veio ao ato, é o hábito mais sórdido dos adolescentes daquela época. Não que aterrorizar a noite e quebrar toda e qualquer lei moral seja algo necessariamente ruim ⎼ digo, é de cunho mau mesmo, o melhor da maldade, mas para esses quase homens dos quais falo isso tudo não pode ser algo que não bom. Não bom no sentido de caridade e todas aquelas tchepukas bobagens que pessoas ditas de bem fazem, mas bom no sentido de acalentar o espírito, de fazer no final da noite cada delinquente bem sucedido se deitar, espichar os pés calejados, limpando o sangue vermelho vermelho das mãos e se sentir um verdadeiro servo de Deus. Assim normalmente se desenrola até um ponto de desgaste inevitável, onde jovens se tornam parte da massa acéfala que garante todos os dias seu pão com geleia da manhã seguinte, pensando estar no topo da colina de sucata, certamente.

❝Maldade vem de dentro, do eu, de mim ou de você totalmente odinokis, e esse eu é criado pelo velho Bog ou Deus, e é seu grande orgulho e radóstia.❞

Para nosso honrado protagonista, entretanto, nada corre tão fluido. A prisão estadual o engole impiedosamente no primeiro grande deslize, o qual seria muitíssimo rude de minha parte lhes contar detalhe por detalhe. O importante é que Alex se dá muito mal, muito mal mesmo, e por mais otimista e astuto que possa ser nosso honorável protagonista, seu tempo na prisão só se alonga, até o infinito indistinto do passar dos anos claustrofóbicos daquela grande lata de metal e concreto. Tudo promete melhorar num ato político no mínimo apressado, que coloca Alex amarrado numa cadeira bizarra cheia de aparatos médicos de medição, prestes a ser uma das cobaias do famigerado Método Ludovico, que promete transformar qualquer delinquente, criminoso ou fera em corpo humano em um cidadão de bem, incapaz de fazer qualquer mal ⎼ certamente, meus amigos, pois ninguém consegue realizar atos da mais pura ultra-violência quando está a golfar seus gategutes órgãos internos violentamente. A questão é: até onde a tentativa de limpar o mundo do crime e da gloriosa violência pode ferir o livre arbítrio, negando aos homens suas preciosas escolhas, que os fazem crescer e se tornar uma massa cinza amorfa que tenta todos os dias desesperada e inutilmente não se tornar apenas mais uma engrenagem na grande máquina estatal?
Livro Laranja Mecânica de Anthony Burgess (Editora Aleph)

❝Mas que tipo de mundo é esse? Homens na lua e homens girando ao redor da terra como mariposas numa lâmpada, e ninguém presta mais atenção às leis terrenas.❞

Livro Laranja Mecânica de Anthony Burgess (Editora Aleph)

Literalizando...

A complexidade da mensagem transmitida por Laranja Mecânica contrasta fortemente com a simplicidade da história: composto em aproximadamente duas semanas, o livro conta com uma escrita densa, aprimorada pelo uso de uma linguagem elaborada pelo próprio autor para uso exclusivo dos nadsats, os adolescentes dessa cidade não identificada num tempo não específico. Com termos mesclando ricamente o inglês e o eslavo, diversas gírias rimadas e um modo de falar regado a  um cinismo que remete à pompa clássica de nobres ingleses, a intenção de Anthony Burgess era criar um cenário de estranheza ⎼ o que ele conseguiu com primazia. A proposta inicial do autor era, justamente, de que o leitor não entendesse por completo o que era dito antes de, por meio de um forte choque de cultura, imergir sem volta no mundo de Alex e sua gangue. As edições atuais (exceto a britânica) contam com um glossário nadsat ⎼ esse apêndice, porém, está ali apenas como um opcional, pois a estranheza é um ponto relevante na experiência de leitura e eu lhes garanto, meus amigos, vocês nada perdem se simplesmente fingirem que aquele glossário não existe.

❝Minha empreitada deverá ser, no futuro que estende para mim seus braços de neve e flores antes que a noja me tome ou que o sangue manche seu refrão final em metal retorcido e vidro quebrado na estrada, para não ser lovetado novamente.❞

Não é em vão que a obra é aclamada aos sete ventos: a crítica social feita por Anthony Burgess é forte e dolorosamente atual. O livro fala de livre-arbítrio, de controle de massas e do crescimento natural (ou não) do homem, e é difícil imaginar forma mais chocante de abordar tais temas. O autor abusa do dialeto nadsat para criar um ambiente assustadoramente alienígena e de cenas tenebrosas de violência (repletas de gatilhos, por sinal) para chocar, para causar repulsa nos seus leitores. Da mesma forma, ele nos introduz Alex como um jovem perfeitamente humano, que gosta de música clássica e que, apesar de seu mau-comportamento facilmente relacionável à instabilidade da adolescência, parece ser de certa forma apegado à sua família. Ele mente, ele goza da vida, ele tem amigos e ele erra. Isso tudo piora a situação do leitor, pois com o tempo nos vemos cruelmente apegados a um personagem de comportamento absolutamente repugnante. A identificação piora quando Alex compartilha sua visão a respeito do mundo em que vive: uma realidade na qual a rotina dos adultos é planejada e controlada meticulosamente. Torna-se muito mais fácil se identificar com o lado rebelde quando o outro lado é totalitário ⎼ embora, acreditem, nenhum dos lados em Laranja Mecânica é o lado bom (se é que este lado existe). A obra de Anthony Burgess abre nossos olhos da maneira mais dolorosa e chocante possível para o que é a maldade, o totalitarismo do governo e o poder de escolha do ser humano, assim como suas consequências.
Livro Laranja Mecânica de Anthony Burgess (Editora Aleph)

❝A música ainda se derramava em metais, tambores e violinos a quilômetros de altura através da parede. A janela do quarto onde eu havia me deitado estava aberta. Itiei até lá e videei uma bela queda até os autos e ônibus e tcheloveks que caminhavam lá embaixo.❞

Livro Laranja Mecânica de Anthony Burgess (Editora Aleph)
Laranja Mecânica é uma obra de ficção científica e distopia, que trata de temas como o processo de crescimento do ser humano, o livre-arbítrio e o controle excessivo que governos podem exercer sobre os indivíduos. É uma obra de leitura inicialmente difícil devido ao vocabulário único, mas que tem um grande potencial de imersão. Devido a diversas cenas de violência, é recomendado cautela para aqueles que se afetam demasiadamente por estes temas. É um livro que obriga o leitor a parar entre cada capítulo e pensar sobre o que acabou de ler ⎼ e lhes garanto, meus caros, depois dessa leitura vocês carregarão lições impossíveis de serem esquecidas.

❝Mas o não eu não pode ter o mau, quer dizer, eles lá do governo e os juízes e as escolas não conseguem permitir o mau porque não conseguem permitir o eu.❞

Aleatoriedades

  • Eu comecei a ler este livro e fiquei mais de uma semana totalmente travado nas primeiras vinte páginas. Quando peguei de verdade pra ler devorei em duas sentadas!
  • Esses vinis nas fotos são todos do senhor Lúcio, meu pai. Gostaria de agradecer a ele por ceder essas peças tão frágeis para essas fotos lindas. E sim, meu pai ama Roberto Carlos.
  • Minha identificação com Alex foi muito paradoxal. Eu sou apaixonado perdidamente por música clássica, assim como ele, e a música é uma peça ricamente explorada na trama, mas é impossível compactuar com todos os seus pensamentos.
  • E só para não perder o costume: este belo livro é da coleção "comprados por impulso" da minha amada Aleph, assim como o Eu Sou A Lenda que já foi resenhado por aqui.
Título: Laranja Mecânica | Autor: Anthony Burgess | Ano: 2014 | Páginas: 199




Ufa! Ainda estão por aí? Vocês já leram "Laranja Mecânica"? Se sim, o que acharam do livro? Se não, tem interesse em ler? Já viram o filme? Me digam nos comentários!
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VOA, LIBELINHA
VOA! 🙘


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