Nós abominamos spoilers. Você está seguro.
Pode o passado curar a dor do presente?
Dizem que a tristeza é de um azul profundo. Mas acho que quem o diz, nunca sentiu o negro mais negro que surge do vazio onde uma vez esteve a pessoa mais importante do mundo. O azul é sereno. A verdadeira tristeza, por outro lado, tem tons tóxicos e intensos que, ainda assim, não conseguem invadir ou misturar-se com o sombrio nada que existe no cerne, aquele ponto que não permite qualquer estratégia de luz. Mas tudo bem, tudo existe em diferentes tonalidades, em diferentes paletas, e o que é azul para mim pode não ser azul para você ou para Leigh. Especialmente para Leigh, cuja mãe agora rasga o céu azul com todos os tons de vermelho.
As cores estavam todas certas: um vibrante acalentador enquanto Axel e Leigh sentavam próximos, quietos, cada um trabalhando em sua própria arte; uma suavidade firme quando a família se reunia, perturbado apenas pelas pinceladas índigo das críticas de seu pai ao tempo que dedicava às cores. O quadro estava todo certo ⎼ exceto quando não estava: existiam momentos em que sua mãe subitamente se tornava um buraco negro, capaz de sugar qualquer tonalidade de cor ao seu redor. Leigh não saberia dizer o que havia de errado: ela parecia feliz, os dedos dançando pelo piano em uma melodia encantadora que só poderia vir de um mundo de fantasia. Mas... bem, já fazia um tempo desde que a casa não era preenchida pelo som das teclas. E agora nunca mais seria, já que sua mãe se tornou um pássaro dos mais diversos tons de vermelho, tão vivos e vibrantes que faz questionar a veracidade da mancha disforme de um vermelho doentio que sempre marcará sua memória. Não houve uma carta, seja de despedida, de desculpa ou de explicação, nada que desse um sentido para aquilo que não tinha mais volta. Tudo o que Leigh encontrou foi um bilhete, amassado e riscado, jogado de lado, descartado: sua mãe queria que ela se lembrasse de algo, mas nunca teve a oportunidade de dizer o quê.
❝De quem foi a culpa? Essa é a pergunta na mente de todos, não é? Mas ninguém nunca vai dizer isso em voz alta. É uma questão que as pessoas chamariam de inapropriada. O tipo de indagação a que todos responde: "não é culpa de ninguém". Mas isso é mesmo verdade?❞
A melhor forma de saber o que a mãe queria que ela se lembrasse (e, com alguma sorte, também descobrir como ajudar o pássaro) seria embarcar em uma longa jornada na busca de suas origens, da ancestralidade que sempre esteve ali mas que nunca pôde ser discutida abertamente. Em todos os seus anos de vida, Leigh pouco soube sobre os avós maternos e sequer teve a chance de conhecê-los ⎼ a distância, física e emocional, por muito tempo pareceu intransponível. A viagem para Taiwan trará não apenas o desafio de uma cultura com a qual ela parece não se encaixar pelo sotaque e costumes de uma vida americana, tanto quanto não se encaixa no padrão americano pela aparência considerada "exótica" por muitos. O mais difícil nesse mergulho profundo será criar laços com uma família tão desconhecida quanto qualquer outra pessoa em que se esbarra nas ruas estreitas e abarrotadas de Taiwan. Leigh perceberá que descobrir os segredos do passado de sua família diz tanto sobre ela quanto sobre aqueles a quem as memórias pertencem: em meio ao luto, a garota verá sua própria identidade ser despedaçada e reconstruída com cores que, embora familiares, agora parecem completamente diferentes.
Literalizando...
A primeira impressão da narrativa em As extraordinárias cores do amanhã pode deixar o leitor um tanto quanto receoso em prosseguir: Leigh, como uma grande artista, tem mais facilidade de se comunicar e expressar suas emoções pelas tonalidades que colorem a cena e à si própria no quadro representado. Nas primeiras páginas, é um tanto quanto complicado se localizar nessa profundez poética das cores que, no entanto, acaba se tornando justamente aquilo que distingue a narrativa: o leitor não apenas se acostuma, como também se entrega aos tons. É significativo (e, para mim, muito caro), o comentário final da autora sobre seu objetivo de retratar a depressão em sua realidade nua e crua: nem sempre há um motivo e não precisa fazer sentido. É uma doença e precisa ser tratada como tal, contado com o apoio e a compreensão familiar ⎼ e nem isso é garantia de que será o suficiente, o que não faz com que a culpa seja de alguém. As extraordinárias cores do amanhã é uma obra que retrata a existência de vida mesmo onde um sujeito escolhe a morte: tudo o que se pode fazer neste momento é emergir da culpa, utilizando-se das memórias (sejam elas boas ou ruins), para reviver os afetos daquela relação.
❝Tentamos com tanto empenho criar pequenas cápsulas do tempo. Memórias amarradas e guardadas, como as luzes de férias, lançando o brilho perfeito nos tons perfeitos. Mas essa escolha sobre o que olhar, o que colocar em destaque, essa não é a verdadeira natureza das lembranças.❞
A estória alterna entre o passado de Leigh, o passado de sua família e o presente, tendo como ponto de convergência o suicídio de sua mãe: as cenas de memórias trazem em si a angústia de novas perguntas e o afeto de velhas respostas, possibilitando ao leitor uma compreensão que vai além dos sentimentos de Leigh. Embora em alguns momentos um arco possa se tornar ligeiramente moroso em comparação aos outros, esta estratégia propicia que o leitor não se prenda apenas à perspectiva da protagonista, tendo também um vislumbre do que constitui a dinâmica familiar e social de Leigh: dessa forma, fugimos de uma construção dos personagens como bons ou maus, certos ou errados. São pessoas, com sentimentos e histórias diversas, com uma vida que ultrapassa o momento do luto. Um dos pontos fortes do livro é a diversidade, étnica e de orientação sexual, dos personagens do enredo e o modo como essas características têm função na constituição de suas identidades, nos conflitos que apresentam e no modo como encaram a vida. Isso faz com que os personagens secundários também tenham presença na narrativa, fugindo do papel de meros coadjuvantes.
As extraordinárias cores do amanhã é uma obra que se aproxima do realismo fantástico, devido à naturalidade com que Leigh lida com o irreal e o estranho em seu cotidiano, uma atitude diante da realidade com fins de expressar as emoções envolvidas no enredo. Trata de temas como depressão, suicídio e luto, de uma forma muito sensível e profunda: a autora focaliza a importância dos laços familiares e amizades na superação da dor de perder um ente querido.
❝Acreditar em algo possui um tipo de magia. Pode fazer aquilo se transformar em realidade.❞
Aleatoriedades
- Fato engraçado: a pena que está nas fotos dessa resenha caiu do meu espanador de pó. Eu ia só jogar fora, mas aí olhei para ela e ela olhou para mim... Nesse momento eu soube que ela poderia ser muito mais do que apenas uma pena descartada.
- Eu comecei a escrever essa resenha tantas e tantas vezes, só para voltar à estaca zero. 2019 foi um ano tão intenso, que acho que eu perdi a sintonia com as palavras e elas me abandonaram momentaneamente, da mesma forma que o fogo se afastou de Dedo Empoeirado porque não suportava sua tristeza.
- As varetinhas são do difusor da minha colega de apartamento. Não contem pra ela. Sério.

Título: As extraordinárias cores do amanhã | Autor: Emily X. R. Pan | Editora: Universo dos Livros | Ano: 2019 | Páginas: 480
Ufa! Ainda estão por aí? Vocês já leram "As Extraordinárias Cores do Amanhã"? Se sim, o que acharam do livro? Se não, têm interesse em ler? Me contem nos comentários!
VOA, LIBELINHA
VOA! 🙘